15 de fevereiro de 2009
11 de fevereiro de 2009
3 de fevereiro de 2009
2 de fevereiro de 2009
David Machado
Um homem que por amor procura desesperadamente ser costurado. Uma mulher que já idosa arruína a vida com a descoberta de um prazer após uma vida inteira de ascetismo. Um rapaz que destrói a vida ao perseguir a memória do pai, esquecida por insistir em respeitar a vontade deste de não ser fotografado. Um génio da música que abandona o seu talento inato para viver sossegadamente atrás de uma secretária. Um negociante que vê o amor como um negócio, até que a falência do seu corpo lhe torna a ideia do amor insuportável.
Estas são algumas das personagens que surgem em "Histórias Possíveis", livro de contos de David Machado que, sem nunca ser verdadeiramente "fantástico", respira essa atmosfera. Machado não gosta do termo "fantástico" mesmo que enquanto leitor aprecie o género. Ele gosta de cultores do "fantástico", como Adolfo Bioy Casares, mas os seus escritores de eleição são mestres como Gabriel García Marquéz ou Mario Vargas Llosa. E prefere realçar que em cada um destes contos há um acontecimento estranho.
Cinco escassas páginas é a duração de cada uma destas histórias, com a excepção das duas finais, que se estendem até gigantescas nove. O uso desta exacta dimensão -que implica contenção e compressão em cada texto -não foi ocasional, mas também não correspondeu a uma descoberta literária da medida exacta a usar num conto.
"O primeiro conto", conta David, a comer um pastel de nata num café pacato na zona de Xabregas, Lisboa, "apareceu há uns anos quando um amigo ia fazer um suplemento para um jornal. Ele convidou-me a ocupar um espaço nesse suplemento com um conto destas dimensões". David escreveu-lhe "dois contos, com o mesmo tamanho", mas depois "o suplemento não avançou". Só que entretanto Machado tinha gostado "bastante de escrever aqueles textos", cujas ideias foi "buscar a um caderno que anda sempre comigo, em que aponto coisas", por isso resolveu voltar com regularidade às ideias esquecidas no caderno e manter a mesma passada em cada conto.
É esta a génese de "Histórias Possíveis", o livro em que David Machado se estreia nos contos. Não é, no entanto, a sua primeira obra, e apesar de novo (tem 30 anos) já teve algum reconhecimento -que deve às crianças: ganhou o Prémio Branquinho da Fonseca (não por acaso, um contista de excepção) em 2005 com "A Noite dos Animais Inventados", um livro infantil. Depois continuou a escrever livros para crianças enquanto tentava uma incursão pelos caminhos do fantástico, com "O Fabuloso Teatro do Gigante", romance publicado em 2006.
"O romance vendeu miseravelmente", atira, sem rodeios, o escritor. É um tipo de estatura média, largo de ombros, com um brinco na orelha e ainda alguma cara de miúdo, que fala com relativo à vontade de tudo -desempoeirado e sem peneiras, notase-lhe amor às histórias. Com facilidade discorre sobre as suas ideias literárias, como lhe surgem, como as trabalha, como decide o que fazer com elas. Passa algum tempo a dizer que dá valor à estrutura, a explicar como procura "saber definir os momentos do conto". Não tenta dourar a pílula citando e recitando autores ou tentando mostrar erudição: nitidamente, ele tem prazer em conversar e pensa pela sua cabeça.
Histórias da aldeia
Passou os últimos anos a "ir falar a escolas com miúdos" e o que conta aos miúdos é esclarecedor da sua forma de encarar a literatura: "Eu gosto de histórias. Quando vou falar com os miúdos começo por dizer exactamente isso: antes de gostar de escrever já gostava de histórias, de as ouvir, de as ver na televisão, no cinema, de as inventar para mim antes de dormir, quando era miúdo." O melhor que a literatura lhe trouxe, foi "conseguir que as histórias dissessem mais do que eu pensava que podiam dizer".
Como foi escrito lá atrás, todas estas histórias são marcadas não por um imaginário fantástico, mas pelo menos pelo insólito: algo que as pessoas causam a si mesmas (ou às outras) sem consciência da consequência dos seus actos. "Sou muito racional e nada dado a superstições", confessa David. "Por isso não posso dizer que o fantástico influencie a minha vida. O que me interessa é como aquilo que não existe pode influenciar o que existe. Como é que a cabeça das pessoas aceita aquilo que é imaginação ao ponto de acreditar nisso."
David dá o exemplo dos velhos nas aldeias. "As histórias que os velhos contam vão passando de gente em gente até que fazem parte da própria aldeia." Ele pára por um pouco e continua: "Se um velho acredita em fantasmas, se calhar diz uma ladainha antes de ir para a cama. Aquilo tornouse a sua realidade."
Machado sabe do que fala quando menciona o exemplo da aldeia. O seu primeiro romance passava-se em Lagares, aldeia imaginária que agora retorna num dos contos de "Histórias Possíveis", mas baseada em Ruivães, aldeia da avó, a que ainda regressa "pelo menos uma vez por ano, nas férias", e onde passou "muito tempo" em miúdo, apesar de ser lisboeta. Esse universo interessa-lhe: "Tenho muitas histórias que partem de histórias que ouvi na aldeia onde a minha avó nasceu", conta. No entanto, as histórias de "Histórias Possíveis" estão localizadas na cidade. (Embora não seja especificada, bem como o intervalo temporal em que decorrem. David também passa algum tempo a justificar estas opções, com a "liberdade do leitor para imaginar".) Há uma boa razão para isso: "A maior parte destas histórias surgiram de algo que me contaram ou que eu vi e tudo o que me contaram passava-se na cidade."
O que David faz neste livro é "pôr situações". "Não precisamos de mais que uma situação para definirmos uma faceta do ser humano", diz, e depois exemplifica com "A costura de Clemente", conto em que um homem acaba a tentar ser costurado. "Eu estava na Argentina quando tive essa ideia. Vi numa janela uma tabuleta a dizer: 'Fazem-se costuras' e veio-me a ideia de um homem que ia a essa loja fazer uma costura no próprio corpo." Neste caso: "O que é que levaria um homem a fazer uma costura no corpo?" Isto, diz David, faz a sua cabeça ir "a lugares onde normalmente não iria".
Alvos e coelhos
Começar com uma imagem ou uma ideia e depois tentar adivinhar o que leva a essa imagem ou ideia foi o método utilizado em cada uma destas histórias. Depois do dois contos iniciais, David sabia que lhe interessava contá-las, porque lhe agrada a "brevidade do conto". Nos romances, diz, "por vezes nota-se que há texto a mais. No conto tem de se ser mais certeiro".
Depois pede desculpa por já ter usado esta imagem numa entrevista antiga, mas repete-a porque lhe agrada: "O conto é acertar no alvo e o romance é caçar coelhos: podes falhar muito tiros, importa é que acertes um."
O tamanho que se impôs viciou-o, ao ponto de, depois de acabar o livro, ter dificuldade em escrever textos mais extensos. David, note-se, é um trabalhador que se senta "à secretária todos os dias, nem que seja para escrever uma frase, nem que seja para apagar a frase" que escreveu. Ele lê "tanto romance como conto" e quer "continuar a escrever romances", mas "se tivesse de escolher" só um género "escrevia só contos". Infelizmente, acrescenta, "os contos não vendem muito", o que lhe parece estranho "porque o conto encaixa naturalmente na vida das pessoas".
A finalizar pedimos-lhe uma possível definição do livro ou destas gentes que o povoam. Após uma pausa ele atira-se à tarefa com requinte: "Neste livro há fissuras na cabeça das pessoas: são pessoas que num determinado momento da sua vida têm um pensamento ou comportamento ligeiramente diferente do que é normal." Depois acrescenta uma frase que lida e relida diz bem mais da fragilidade do ser humano do que à primeira leitura pode parecer: "As fissuras no real só existem porque a cabeça das pessoas permitem que exista."